A sociedade gaúcha ficou surpresa com a notícia de que o julgamento dos acusados no caso da Boate Kiss ia ser anulado e que os réus que estavam presos seriam postos em liberdade. Decorridos mais de nove nos do trágico acontecimento, quando se pensava que as responsabilidades seria por fim apuradas e os culpados punidos, o processamento do fato voltará à estaca zero caso seja confirmada a decisão do TJ – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul devendo haver, então, novo julgamento.
A anulação
ocorreu por dois votos a um em um órgão colegiado do Tribunal de Justiça, e atendeu aos recursos
interpostos pela defesa dos réus alegando algumas nulidades. Com isso o mérito
da questão, isto é, se os réus eram ou não culpados pelas mortes das duzentas e
quarenta e duas pessoas na boate, não chegou a ser apreciado pelos
desembargadores do TJ, pois quando a preliminar de nulidade é aceita como
elemento de defesa o processo é declaro nulo e todo o assunto que vem depois se
quer é avaliado. É uma questão particular dos processos judiciais e está
explicitamente determinado em lei.
Alguns
esclarecimentos, então, para que o amigo leitor, talvez leigo em matéria de
direito, possa se inteirar sobre o tema. E uma ressalva: todos os argumentos e
elementos a seguir apresentados estão amplamente definidos em lei, não são
criação da minha cabeça ou se quer da minha vontade, certo?
Primeiro, a decisão de anulação do julgamento ocorreu em sede de recurso, em segunda instância, o que significa que na primeira instância, conduzida por um juiz de direito, os réus foram condenados. Os réus perderam e seus advogados recorreram.
A decisão de
anulação do julgamento não é definitiva, pois a Promotoria de Justiça e os
assistentes da acusação podem dela recorrer para o STJ – Superior Tribunal de
Justiça ou, de repente, até para o STF – Supremo Tribunal Federal, órgãos que
poderão anular a anulação (essa foi boa). Se na instância superior a anulação
for anulada, passa a valer a decisão da primeira instância, voltando o processo
a tramitar a partir da anulação; agora, se a anulação for confirmada, o
processo voltará a tramitar desde antes do julgamento. Parece confuso né?
Uma questão que vira-e-mexe eu abordo aqui, e que é muito pertinente à decisão do Tribunal de Justiça e ainda suscita muitas dúvidas, diz respeito à distinção entre questão de fato e questão de direito nos julgamentos: a questão de fato, ou matéria de fato, diz respeito ao fato que está sendo julgado, às provas que colaboram para apurar o fato em si, contribuindo para a culpa ou não dos acusados, no caso da boate Kiss, as questões e circunstâncias que colaboram para a responsabilização, ou não, dos réus, isto é, se eles deram causa às mortes dos jovens ou se contribuíram para as mesmas. Questão de direito ou matéria de direito, diz respeito, grosso modo, às implicações da lei e, por conseguinte, dos processos e procedimentos, na apuração dos fatos e das questões de fato, por fim, na responsabilização dos acusados. A anulação do julgamento dos réus no caso da boate Kiss se deu por que o Tribunal de Justiça aceitou os argumentos da defesa quanto às preliminares de questões de direito, e não de fato, qual seja principalmente a distinção entre homicídio culposo e homicídio com dolo eventual.
Homicídio
culposo é aquele em que o autor, mesmo não querendo o resultado morte,
contribuiu para ela por que agiu com imprudência, com imperícia ou com
negligência, tendo, então, culpa; no homicídio com dolo eventual, o agente ou
autor do homicídio sabe que suas ações podem causar a morte em alguém, mas
acredita honestamente que não a causará, então continua agindo, concluindo-se
que ele assumiu o risco de matar, daí o nome dolo (vontade) eventual de matar.
Existe um terceiro tipo de homicídio que é o doloso, quando o autor quer matar
a vítima, tem a intensão (dolo) de matar. Cada tipo de homicídio tem uma pena
diferente, daí por que os recursos para caracterizar ou descaracterizar cada um
são muito comuns no direito brasileiro, pois quanto mais grave, maior a pena.
Parece que é o que está ocorrendo no caso da boate Kiss.
O fato de o julgamento ter sido anulado, mesmo que a princípio provisoriamente, não significa que os réus são inocentes. Ninguém foi inocentado. Significa apenas que uma questão de direito, determinada em lei, portanto, e que não foi observada, mostrou que o processo precisa ser refeito. Os tribunais superiores irão confirmar isso ou não.
Anular
julgamentos por questões de direito, sem chegar-se a se observar, avaliar e
julgar as questões de fato, é um expediente muito comum no Judiciário
brasileiro. Muito comum mesmo. Por exemplo, foi o que aconteceu com o
julgamento de ex-presidente Lula: alguns dos processos dele foram anulados por
que os órgão recursais aceitaram as teses da defesa que atingiam apenas
questões de direito, o que não significa, como eu já disse, que ele tenha sido
absolvido ou inocentado. Ele deverá ser novamente julgado, mas desta vez
seguindo-se os ritos e as determinações legais corretas, evitando-se as que
deram causa às anulações.
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