Esta semana
tive o desprazer de participar das solenidades fúnebres de um amigo que faleceu
de COVID. Numa questão de trinta dias ele adoeceu, foi para o hospital, ficou
na emergência, foi para a UTI, precisou ser entubado e, depois de três dias,
morreu.
Era grupo de
risco, tinha comorbidades, acho não se cuidava.
A surpresa da
morte se deu em face da reiterada esperança que tínhamos de que pudesse superar
a doença, afinal, até três dias antes de morrer o quadro, grave, encontrava-se
“estável”, conforme boletim de uma esperançosa esposa. A tristeza da morte não
estava apenas na idade do amigo, afinal essa geração de sessenta e quatro não é
tão vigorosa quanto a de sessenta e três (kkk), que essa sim é uma geração de
fortes, mas também estava no fato de que quando se perde um amigo, desses das
antigas, amigo daqueles desde a adolescência, o único amigo restante de vários
que se perderam no tempo e na distância, parece que um pedaço da gente morre
junto; ao menos temporariamente, um membro de nosso corpo e um naco de nosso
espírito vai junto no caixão.
Víamo-nos
pouco, mas conversávamos muito. Herdamos gostos e assuntos de interesse em
comum como pescarias, acampamentos, filmes, armas, bebidas, mulheres, pois
começamos a namorar nossas esposas mais ou menos na mesma época. Há quatro meses
eu o levara no alambique aqui do Vale Verde para “se abastecer para o inverno”, como
ele disse, mas teria que voltar em breve, pois o combustível fora pouco... Na
nossa penúltima conversa tratamos das piranhas (os peixes) que apareciam no
Jacuí nos meses de verão, e discutimos questões referentes ao desequilíbrio
ecológico que poderia causar esse problema. Parceria de muitos causos, muitas
aventuras, algumas desventuras. Nossa última conversa foi exatos trinta dias
antes de morrer, no dia que foi hospitalizado. Perguntei, via watts, se ele ainda
vivia ou se eu já precisava pôr o terno preto no sol. Ele disse que sim, estava
vivo, mas que estava hospitalizado e já dependia de oxigênio; concluiu
comentando do extremo cansaço que sentia, da dificuldade de respirar e que “uma
doença dessas só Hitler merecia pegar...”.
A esposa dele,
enfermeira do hospital de Clínicas de Porto Alegre, ao mesmo tempo em que era
esperançosa, sabia, por ofício, que o quadro era gravíssimo, quase
irreversível. Nos últimos dias manteve a chama acesa no grupo dos amigos, mas preparou-nos para o desfecho. A ligação
telefônica às quatro e cinquenta, como a maioria das ligações feitas na
madrugada, apenas confirmou o que já se esperava. O Bixo Véio, o Caboclo,
guerreiro sobrevivente das selvas do Vietnam, como a gente gostava de se
chamar, bateu as botas! Se foi o caboclo na flor da idade, como muitas vezes
comentávamos ao saber que um de nossa geração tinha morrido.
Durante o
velório, após os cumprimentos iniciais (sempre fico
constrangido na hora de prestar esses cumprimentos), após dividir a dor com
muitos amigos e conhecidos em comum, notei que havia um grupo de amigos, os
novos amigos dele, amigos também de muitos anos; desses eu conhecia um, já havíamos
nos encontrado algumas vezes, e fui cumprimenta-lo. Perguntei se ele lembrava
de mim. Ele disse que sim, óbvio, e me apresentou aos demais amigos: _ este é o amigo número dois da vida do Sandro, aquele que ele gosta de ficar
contando pra nós das histórias; como
eu já tinha perdido o amigo, que estava ali, gelado, esticado no caixão, não
perdi a piada: _ se sou o amigo número dois, onde está o número um que não vi
ainda? Foi um momento muito emocionante, pois éramos
amigos, quase todos desconhecidos entre si, dividindo a mesma dor da perda de
um parceiro em comum.
Ora, se meu
amigo comentou com o amigo dele que eu era um amigo, e esse amigo dele sabia
disso e me apresentou como tal aos demais amigos, não pude deixar de ficar
feliz, de me sentir mesmo homenageado pelo amigo falecido, pois sabemos que o
tempo e a distância amainam relações e relacionamentos, superficializam antigas
amizades e mitigam sentimentos. Eu estava ali, considerado amigo pelos amigos
dele, fazendo parte de um pequeno grupo, mostrando que a distância física não
fora suficientemente forte para sofrear o sentimento de amizade há décadas
cultivado. Um momento de luz em meio à tristeza!
E assim é a
vida; e também a morte. Felizes os que possuem amigos autênticos, pois mesmo
que morram, permanecerão vivos em nossas memórias. E morrerão um segunda vez
quando nós, então, também formos. E iremos, que ninguém vai ficar para semente.
Ao ajudar a
carregar o caixão, mais um que eu carrego, não pude deixar de lembrar que ele
não atendeu meu último pedido: que já que ele não se cuidava, que ao menos
emagrecesse um pouco, para não pesar no caixão. O ômi tava pesado sim. Não
deixei de rir, assim como ele também não deixaria. Assim são as boas amizades;
na alegria e na tristeza; no prazer do reencontro e na dor da despedida
derradeira. Que Deus o tenha.