Alguém já disse...

Os do mal começam a vencer quando os do bem cruzam os braços!

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Uma homenagem ou do tempo e das coisas a que devemos nos acostumar, pois os próximos seremos nós...


Eu tenho uma tia. Na verdade eu tenho várias. Algumas ainda estão neste mundo; a maioria já não.... Mas eu tenho uma tia que me é especial, pois foi com ela que vivi e convivi grande parte de minha vida.
"Apenas um arranhão no nariz..."
               Ela conta atualmente 92 anos de vida. Mora semi-sozinha, pois as moças que trabalham com e para ela só o fazem por que se lhe quase foram impostas. Essa necessidade, de ter alguém que a acompanhe de forma cada vez mais constante, tem sido uma imposição da família, medida que tem se intensificado com a avançar dos tempos. Imposição não; convencimento. Esta é uma tia especial, a quem não se impõem muitas coisas, a quem não se pode impor muitas coisas, pelo contrário.
                A idade avançada está por de aplicar algumas surpresas, como acontece com todo mundo que chega nessa idade, porém, seu intelecto, seu espírito e sua alma estão plenamente conservadas, íntegras e ativas. Pessoa de muita cultura e sabedoria, que ao longo da vida desenvolveu absurda paciência e invejável resiliência, preservando, até este momento, os conceitos e preconceitos que a identificam como uma Pires, e que se materializam no nome Suzana.
                É uma pessoa que teve a vida que escolheu. Solteirona de carteirinha, que pelos desígnios da vida, também do destino, dedicou grande parte de sua existência a dois institutos de indelével importância: à Igreja e à família, não necessariamente nesta ordem.
                Em face de sua combativa autonomia e como reflexo do passar do tempo, vira-e-mexe nos vemos na necessidade de buscar socorro: é uma queda, outra queda, um rosto tomado por hematomas, uma mão quebrada, um tombo na rua, outro dentro de casa... O último, esta semana, foi após o banho, quando o velho e altivo pescoço sucumbiu ao impacto de uma teimosa parede que insiste em estar no mesmo lugar há muitos e muitos anos... Fratura de vértebra. E mais uma vez, corre para o hospital.
                Amigo leitor, não tem família neste mundo que não passou, e não passará, pelo emblemático momento de ter que correr com idosos para um hospital. Não tem. Assim, também, ninguém sabe, quiçá imagina, o que é ter que usar serviços médico-hospitalares para atender um idoso, cujo quadro, já fragilizado pela necessidade, amplia-se muito mais pela dependência de ter que desacomodar os seus para que cuidem de si. Por melhor que seja o plano de saúde, por mais boa vontade que tenham médicos, enfermeiros, atendentes, a estrutura dos mecanismos que cuidam de nossa saúde, de forma não muito satisfatória, se fazem sentir. E a gente ali, não podendo se deixar sucumbir, pelo bem de nosso ente querido e pelo nosso bem.
                Fico feliz por ser a pessoa da família mais próximo dela. Até agora somos eu e a patroa, os primeiros a prestar socorro. Corre, busca, leva para o hospital, entra na fila do atendimento, espera, acompanha ao médico, espera, traduz o que ele diz, espera, interpela as enfermeiras, corre na portaria, espera mais um pouco, transmite as notícias, nem sempre boas, preenche formulário, senta e espera, tranquiliza, suaviza, ameniza a dor com atenção, carinho, paciência e, acima de tudo, extremo respeito e convicção de que nosso querido não está ali por que quer, pois se tivesse a opção, primeiro não estaria ali, depois, não se disporia a nos dar trabalho.
                Ah, esqueci-me de dizer, ela é meio surda de um ouvido (do outro ela é totalmente), então a comunicação tem que ser feita no tom, no timbre e na altura certas, e repetida várias vezes, mas de forma que a pessoa entenda e a gente não se torne agressivo, impaciente ou qualquer outra coisa desagradável, que intensifique momento de tanta fragilidade... 
                Como disse acima, fico feliz em pagar o preço de ser o primeiro (parente) a dar o atendimento inicial, mesmo ela morando há muitos quilômetros de mim. Não faço por que posso, tampouco por obrigação. Muito menos por pena, visto não ser pessoa de quem se tenha pena. Faço pelo simples e óbvio motivo de querer fazê-lo. Faço por que quero. Acima de tudo e de todos. Contra tudo que possa parecer dificuldade. Pago o preço, que não é pouco; mas recebo o bônus, que é muito maior, com certeza.
                Esta semana, no hospital, tive o privilégio de dar-lhe comida na boca. Fiquei emocionado (como fiquei agora descrevendo a oportunidade aqui no jornal): eu, o Breninho, dando comida na boca da tia Suzana. Brinquei, dizendo que apenas estava retribuindo as muitas e muitas vezes em que ela me deu comida na boca. Rimos muito. Ainda, sabendo da resposta perguntei se ela se sentia constrangida em receber, por mim, comida na boca. Ela sabe que não sou pessoa de dar vazão ou de merecer constrangimentos. A tia é boa de garfo e entre uma garfada e outra, eu ali, pensando, refletindo... Qualquer hora serei eu, te prepara. Ou não!
                É como eu sempre digo: se temos que fazer alguma coisa pelos nossos, que seja em vida. Depois, não adianta, pois nada se apresenta mais incômodo do que ter que viver com nossa consciência e a eterna dúvida de que deveríamos ter feito algo mais.
                Já avisei minha tia: que não espere me ver chorando em seu funeral. Tô fora! E olha que eu sou chorão. Claro que a dor da perda calará profundo. Mas tenho muito bem resolvido que ela teve a vida que escolheu, e se não terá o desfecho que pensou possível, ao menos desenvolveu a paciência para pensar antes de emitir juízos, a serenidade do silêncio e a resiliência para enfrentar o que tem que ser enfrentado; chegou à velhice, sem a hipocrisia de chamar melhor idade, em plena consciência, com a saúde relativamente boa e dona de seu livre e pleno arbítrio. Oxalá possamos ter, também este privilégio.
                Por falar em melhor idade, eis aí um conceito superlativamente relativo, pois para mim a melhor idade se encontra ali, naquela faixa situada entre os vinte e um e os trinta e cinco anos de idade, período em que definimos, realmente, o que queremos ser no resto de nossas vidas.
                Hoje estou aqui, mais distante do que do costume de estar distante, prestando esta justa homenagem, que não soe como despedida, mesmo que ninguém fique para semente ninguém que apartar-se dos seus, mas como presságio de que ainda teremos muitos bons momentos para conversarmos, rirmos, ouvir histórias e subentender conclusões nem sempre felizes sobre os nossos e sobre os outros.
                Se a vida é uma viagem, que eu possa escolher a poltrona onde sentar. E se eu não posso escolher onde descer, que ao menos eu me orgulhe de descer com dignidade cada um dos degraus que se apresentam.