Eu tenho uma tia. Na verdade eu
tenho várias. Algumas ainda estão neste mundo; a maioria já não.... Mas eu
tenho uma tia que me é especial, pois foi com ela que vivi e convivi grande
parte de minha vida.
"Apenas um arranhão no nariz..." |
Ela
conta atualmente 92 anos de vida. Mora semi-sozinha, pois as moças que
trabalham com e para ela só o fazem por que se lhe quase foram impostas. Essa
necessidade, de ter alguém que a acompanhe de forma cada vez mais constante,
tem sido uma imposição da família, medida que tem se intensificado com a
avançar dos tempos. Imposição não; convencimento. Esta é uma tia especial, a
quem não se impõem muitas coisas, a quem não se pode impor muitas coisas, pelo
contrário.
A
idade avançada está por de aplicar algumas surpresas, como acontece com todo
mundo que chega nessa idade, porém, seu intelecto, seu espírito e sua alma
estão plenamente conservadas, íntegras e ativas. Pessoa de muita cultura e
sabedoria, que ao longo da vida desenvolveu absurda paciência e invejável
resiliência, preservando, até este momento, os conceitos e preconceitos que a
identificam como uma Pires, e que se materializam no nome Suzana.
É
uma pessoa que teve a vida que escolheu. Solteirona de carteirinha, que pelos
desígnios da vida, também do destino, dedicou grande parte de sua existência a
dois institutos de indelével importância: à Igreja e à família, não
necessariamente nesta ordem.
Em
face de sua combativa autonomia e como reflexo do passar do tempo, vira-e-mexe
nos vemos na necessidade de buscar socorro: é uma queda, outra queda, um rosto
tomado por hematomas, uma mão quebrada, um tombo na rua, outro dentro de casa...
O último, esta semana, foi após o banho, quando o velho e altivo pescoço
sucumbiu ao impacto de uma teimosa parede que insiste em estar no mesmo lugar
há muitos e muitos anos... Fratura de vértebra. E mais uma vez, corre para o
hospital.
Amigo
leitor, não tem família neste mundo que não passou, e não passará, pelo
emblemático momento de ter que correr com idosos para um hospital. Não tem.
Assim, também, ninguém sabe, quiçá imagina, o que é ter que usar serviços
médico-hospitalares para atender um idoso, cujo quadro, já fragilizado pela
necessidade, amplia-se muito mais pela dependência de ter que desacomodar os
seus para que cuidem de si. Por melhor que seja o plano de saúde, por mais boa
vontade que tenham médicos, enfermeiros, atendentes, a estrutura dos mecanismos
que cuidam de nossa saúde, de forma não muito satisfatória, se fazem sentir. E
a gente ali, não podendo se deixar sucumbir, pelo bem de nosso ente querido e
pelo nosso bem.
Fico
feliz por ser a pessoa da família mais próximo dela. Até agora somos eu e a
patroa, os primeiros a prestar socorro. Corre, busca, leva para o hospital,
entra na fila do atendimento, espera, acompanha ao médico, espera, traduz o que
ele diz, espera, interpela as enfermeiras, corre na portaria, espera mais um
pouco, transmite as notícias, nem sempre boas, preenche formulário, senta e
espera, tranquiliza, suaviza, ameniza a dor com atenção, carinho, paciência e,
acima de tudo, extremo respeito e convicção de que nosso querido não está ali
por que quer, pois se tivesse a opção, primeiro não estaria ali, depois, não se
disporia a nos dar trabalho.
Ah,
esqueci-me de dizer, ela é meio surda de um ouvido (do outro ela é totalmente),
então a comunicação tem que ser feita no tom, no timbre e na altura certas, e
repetida várias vezes, mas de forma que a pessoa entenda e a gente não se torne
agressivo, impaciente ou qualquer outra coisa desagradável, que intensifique
momento de tanta fragilidade...
Como
disse acima, fico feliz em pagar o preço de ser o primeiro (parente) a dar o
atendimento inicial, mesmo ela morando há muitos quilômetros de mim. Não faço
por que posso, tampouco por obrigação. Muito menos por pena, visto não ser
pessoa de quem se tenha pena. Faço pelo simples e óbvio motivo de querer
fazê-lo. Faço por que quero. Acima de tudo e de todos. Contra tudo que possa
parecer dificuldade. Pago o preço, que não é pouco; mas recebo o bônus, que é
muito maior, com certeza.
Esta
semana, no hospital, tive o privilégio de dar-lhe comida na boca. Fiquei
emocionado (como fiquei agora descrevendo a oportunidade aqui no jornal): eu, o
Breninho, dando comida na boca da tia Suzana. Brinquei, dizendo que apenas
estava retribuindo as muitas e muitas vezes em que ela me deu comida na boca. Rimos
muito. Ainda, sabendo da resposta perguntei se ela se sentia constrangida em
receber, por mim, comida na boca. Ela sabe que não sou pessoa de dar vazão ou
de merecer constrangimentos. A tia é boa de garfo e entre uma garfada e outra,
eu ali, pensando, refletindo... Qualquer hora serei eu, te prepara. Ou não!
É
como eu sempre digo: se temos que fazer alguma coisa pelos nossos, que seja em
vida. Depois, não adianta, pois nada se apresenta mais incômodo do que ter que
viver com nossa consciência e a eterna dúvida de que deveríamos ter feito algo
mais.
Já
avisei minha tia: que não espere me ver chorando em seu funeral. Tô fora! E
olha que eu sou chorão. Claro que a dor da perda calará profundo. Mas tenho muito
bem resolvido que ela teve a vida que escolheu, e se não terá o desfecho que
pensou possível, ao menos desenvolveu a paciência para pensar antes de emitir
juízos, a serenidade do silêncio e a resiliência para enfrentar o que tem que
ser enfrentado; chegou à velhice, sem a hipocrisia de chamar melhor idade, em
plena consciência, com a saúde relativamente boa e dona de seu livre e pleno
arbítrio. Oxalá possamos ter, também este privilégio.
Por
falar em melhor idade, eis aí um conceito superlativamente relativo, pois para
mim a melhor idade se encontra ali, naquela faixa situada entre os vinte e um e
os trinta e cinco anos de idade, período em que definimos, realmente, o que
queremos ser no resto de nossas vidas.
Hoje
estou aqui, mais distante do que do costume de estar distante, prestando esta
justa homenagem, que não soe como despedida, mesmo que ninguém fique para
semente ninguém que apartar-se dos seus, mas como presságio de que ainda
teremos muitos bons momentos para conversarmos, rirmos, ouvir histórias e
subentender conclusões nem sempre felizes sobre os nossos e sobre os outros.
Se
a vida é uma viagem, que eu possa escolher a poltrona onde sentar. E se eu não
posso escolher onde descer, que ao menos eu me orgulhe de descer com dignidade cada
um dos degraus que se apresentam.
Bah Breno, não consigo encontrar palavras melhores nem tão precisas p descrever a tia Su! Linda homenagem!!! Por essas e outras q sigo sendo tua fã...bjs c amor
ResponderExcluirO fima da vida é triste.
ResponderExcluirA vida tem disso. E uma vida longeva, um bônus, traz o peso da idade como ônus.
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